Wednesday, March 28, 2007

 

A inutilidade de saber umas coisas

A abertura deste médium ao opinanço tem menos de uma semana, mas já torna complicada a escolha de um tema: podia reivindicar a minha autoridade científica e as passadas trocas de argumentos pró e contra pós-modernismo para içar a discussão sobre o lugar da ciência aos escaparates quizísticos. E hei-de fazê-lo, hei-de fazê-lo. Mas, conforme a foto abaixo demonstra, estou em recuperação do meu infeliz contacto com o remate fulminante de um rapaz de cento e muitos quilos rotundos, e o única dissertação que me ocorre centra-se na maravilha de engenharia que é um joelho, e no mau jeito que dá não poder usar os dois.

Fugindo isto à cultura generalista, sinto-me sem assunto (o que é raro). Ora isto é, por si só, um tema passível de opinião: a supremacia das questões ambientais e corporais sobre - bem, sobre tudo o resto. É apenas óbvio que a minha putativa cultura geral não me serviu de nada quando o meu joelho decidiu migrar para uns centímetros ao lado: por mais que leia ou aprenda, o meu joelho continua estúpido e casmurro, incapaz de argumentar com os tendões qual a posição mais vantajosa para ambos. O mesmo se aplica a qualquer outra parte do corpo, com ou sem piadas boçais de soslaio. Somos, portanto, forçados a admitir que a grande parte do que nos constitui é irremediavelmente estúpida. E, no entanto, funciona bem durante grande parte da nossa vida, sem questões existenciais sobre os porquês da locomoção, digestão, circulação e demais funções.

O tema é claro: de que nos serve saber? No mesmo artigo do Hugo, este apontava o fim inexorável do Homo Universalis, recipiente de todo o conhecimento da sua era (ou, vá, da sua civilização contemporânea). Mas, opino eu, esta não é uma crítica, apenas uma constatação - e, pior, nostálgica. Pior para nós, que temos como meio de cultura esta panóplia de factos desnecessários. Porque não só é impossível abarcar todo o espectro da cultura actual (fractal, portantos, mas isso era outra crónica), como não é necessário. A humanidade adaptou-se à exponenciação do conhecimento, optando pela especialização; e se, no século quinze, esta distinção separava os artesãos dos sábios, hoje separa os profissionais dos sabichões. A degradação social da coisa é óbvia.

Qual é, então, a vantagem reprodutiva de ser culto, além do mero acompanhamento das parangonas jornalísticas e literatura urbana? Suponho que a resposta típica resida na capacidade de observar melhor o mundo, de reduzir a sua complexidade a categorias abarcáveis, de tomar decisões direccionadas para o fundamental, etc. Mas não será antes o contrário? Não se encontrarão quase tantas justiças como injustiças, vantagens como desvantagens, que qualquer escolha ou ponto de vista fundamentado se torna impossível, e nos devamos contentar com uma bolha social que nos acolha e subtraia ao choque da big picture? Especialmente quando esta nos tem apenas como motivo secundário, alvo de curiosidade estatística, mera cauda da distribuição normal?

Stricto sensu, isto não é uma opinião, mas uma pergunta: serei eu apenas um pessimista, atribuindo à inutilidade da cultura simples desregulações químicas do hipotálamo? Ou, mesmo se numa perspectiva mais ligeira, não teremos todos a consciência de que apostámos no cavalo errado, e que estamos apenas a tentar recuperar, numa escala social muito reduzida, as benesses que são destinadas aos jogadores de futebol, estrelas televisivas e políticos de pacotilha? E, mais directamente: é o quiz apenas um desporto como os demais, escolhido de acordo com os talentos naturais ou adquiridos? Ou terá também a função de "Sabichões Anónimos", embora recusando uma qualquer terapia de doze passos que nos livrem de tanta bagagem sem utilidade?

Eu sei que exagero: citando essa grande autoridade da cultura nacional, todos temos uma vida lá fora, porventura melhor ou pior, mas que foge ao arquétipo do intelectual foragido na barba e cachimbo. Mas, correndo o risco de tentar abarcar o tal "grande quadro", podemos encontrar no existencialismo uma aceitação desta inutilidade do saber - e, no pós-modernismo, estruturalismo e positivismo, uma tentativa de fugir à escolha, desvalorizando os juízos em detrimento dos juízes, da construção frásica ou das analogias inter-culturais. O discurso político moderno assenta na radicalização ou ultra-relativização, revelando uma opção cega ou uma incapacidade de escolha. "Ignorance is bliss" - não será melhor ser estúpido?

Moral da história: dói-me o joelho comó catano!

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Comments:
Interessante.

"Ou, mesmo se numa perspectiva mais ligeira, não teremos todos a consciência de que apostámos no cavalo errado, e que estamos apenas a tentar recuperar, numa escala social muito reduzida, as benesses que são destinadas aos jogadores de futebol, estrelas televisivas e políticos de pacotilha?"

Julgo que sim. Este blog é a prova disso. As melhoras para o joelho, por muito estúpido e casmurro que seja.
 
Até ao momento, 4 posts muito interessantes - e com pontos de contacto entre todos. Tentarei fazer semanalmente uma súmula, um grafo, com alguns comentários meus.
 
A propos:

«Adriano Moreira, questionando-se sobre o papel da filosofia no modelo político ocidental, pronunciou-se contra a “mercadorização” da cultura e defendeu que a sociedade do conhecimento tem de ser também a sociedade da sabedoria. Aí, citou Gandhi como tendo escrito “Lembro-me da minha ignorante e muito sábia Mãe”.(...). Diogo Pires Aurélio lembrou os pecados que nos cercam culturalmente: a ideia de que a ciência (positivista) é a única forma de saber (a que chamou “modernismo”), a ideia de que tudo são pontos de vista e narrativas (a que chamou “pós-modernismo”), a ideia de que o saber só interessa se tiver utilidade imediata (a que chamou “utilitarismo”).»

http://maquinaespeculativa.weblog.com.pt/2007/03/26/olhares_sobre_a_filosofia
 
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