Sunday, December 10, 2006

 

Manobras de Diversão

1. Falta menos de uma semana para o jogo decisivo. Por isso, é provável que muitos de vós se tenham esquecido que faltam duas para o Natal - para já, é certo, um acontecimento menor. Mas achamos por bem fazer uma pequena lembrança. Ora digam lá que não gostariam de encontrar isto no sapatinho. Totally 80s e tudo, deve ser impecável.

Confesso que há anos que não jogo Trivial Pursuit, do qual fui feroz adepto e praticante na adolescência. E textos como aquele que se segue não ajudam ao surgimento da vontade de reavivar o vício:

O novo Trivial

por Inês Teotónio Pereira

Ofereceram-me a nova edição do Trivial Pursuit. Abri o jogo com imensa curiosidade para ler as novas perguntas de História, Desporto, Artes, Ciência, etc.
Desilusão: o jogo está completamente desvirtuado. Os temas são Visão Global, Som e Imagem, Notícias, Mundo Escrito, Inovações e Jogos.
Pareceu-me curioso. E fui ver. Eis alguns exemplos de perguntas pela respectiva ordem dos temas descritos: "A Praia das Maçãs fica mais perto de Sintra ou da Comporta?"; "Quem apresentou em Portugal as várias edições do Big Brother?"; "Qual a nacionalidade de Saddam Hussein?"; "Nas bibliotecas costuma haver um prazo para devolver os livros emprestados?"; "Em informática o que quer dizer PC?"; "As bolas de râguebi são redondas?";
E pronto. Eis mais uma geração perdida.


Isto é verdade?


2. Se for, então isto (e os primos) é, provavelmente, uma boa alternativa. Não conheço, mas vem recomendado. Claro que para os mais relutantes, há sempre uma reactualização dos clássicos.


3. O Professor Nuno Crato, provavelmente o mais famoso dos divulgadores científicos portugueses (com justiça, diga-se; e já agora, que também vem na calha do texto citado, isto também dá um bom presente natalício), ocupou-se, há coisa de 3 semanas, na sua habitual coluna no Expresso, da origem etimológica da palavra trivial - a propósito da trivialidade na matemática.

As estradas são o império e o império é as estradas, escreveu Howard Fast. De acordo com o autor, a origem do termo reside no vocábulo latim trivia - tri de "três" e via de "estrada". Uma trivia era um cruzamento viário de três vias, o mais comum dos entroncamentos no sistema rodoviário romano. Tão comum, que por extensão, se adoptou o uso da palavra para designar algo ordinário, vulgar - e, curiosamente, qualquer lugar reles ou mal frequentado. Foi esta tese, a do lugar onde três vias se encontram, que Nuno Crato apresentou.

Existe outra: com o aparecimento das universidades, na Baixa Idade Média, os currículos estavam dividos em duas áreas - o Trivium (que englobava Retórica, Dialética e Gramática), mais virado para a eloquência e vida mundana, e o Quadrivium (Geometria, Música, Astronomia e Aritmética), de carácter mais científico. O vocábulo Trivium designava, no latim medieval, as três primeiras das sete "artes liberais". Trivial seria então o conhecimento incluído no trivium.

Ora, esta tese parece oferecer-nos um interessante ponto de partida para o apetitoso e sempiterno debate quanto à oposição entre humanidades e ciências nos jogos de quiz (e o quiz é, por excelência, o jogo do conhecimento trivial), e da medida justa que cada uma deve ocupar. Estará aqui a explicação para o putativo défice de perguntas "científicas" nos jogos do quiz e para a proporcional escassez de jogadores com formação académica em ciências puras? Um assunto a que este blog promete regressar num futuro próximo, desejavelmente através das vossas contribuições.


4. Na sondagem, os Cavaleiros lideram destacadíssimos, perseguidos pelos Mamedes. Os Fósseis parecem convencer poucos quanto às suas possibilidades. É um resultado algo intrigante. Vox populi, vox Dei ou vão todos ficar de cara à banda na sexta-feira?


5. Ah, a polémica, não falamos da polémica. São as ordens que recebemos de Langley, nada podemos fazer. Amanhã começa a 4ª edição do concurso, só para vos alienar mais um bocadinho.

[post especialmente dedicado ao comentador "o arauto da verdade"]

Comments:
o comentador ou o comandantador?
 
Independentemente das razões gnoseológicas e jungianas para a coisa e tal, acho óbvio que não há mais ciência porque ninguém pesca puto do assunto e, como tal, não lhe atribui a respectiva relevância (com honrosas excepções de quizeiros não-cientistas).

E, independentemente da proporção de perguntas no quiz, o assunto mais sério da importância da ciência como luta armada contra-pós-modernismos é, na minha opinião, ignorado pelas massas ululantes, alienadas pelo hiper-relativismo seráfico do Derrida e consortes.

Especificamente: colocando a discussão platónica do que é o real no seu devido lugar, o paradigma científico moderno da falsicabilidade enquanto critério de avanço intelectual divide a argumentação em camadas impermeáveis (vide Espinoza para uma versão acientífica da coisa), numa espécie de modelo de caixa negra de interface entre teorias e previsões (isto é, uma teoria não pretende conhecer a realidade, mas descrevê-la - aqui é o meu desvio positivista).

E isto é chato, porque é exigente para com o masturbador intelectual profissional e impede a deriva para o terreno pantanoso da metafísica (que pode ou não ser drenado, mas isso é outro assunto). É muito mais conveniente imputar qualquer ponto de vista a preconceitos e motivos sociológicos obscuros do que debatê-lo, e hiper-relativizar culturas e antagonismos como sendo igualmente válidos do que discutí-los, não se vá cair no pecado de julgar seja o que for - mais vale sacrificar a própria noção de realidade como um "algo" alheio e incontornável.

A ameaça lúgubre do fascismo serve para disfarçar a desonestidade da coisa... e assim se prende a esquerda moderna na sua própria teia, acusando a direita de paternalismo material para com os pobrezinhos, mas abusando de misericórdia intelectual para com os diferentes mas iguais e tal.

E eu até sou de esquerda (e acho que me desviei do assunto, mas apeteceu-me mandar umas atoardas).
 
Assinado: Comandante Jorge, das Frente Popperiana de Libertação Intelectual
 
Um esquerdista a criticar o relativismo existencial de Derrita e restante corja; um cientista que parece não recusar, aprioristicamente, a fundamentação metafísica da ciência; e, especialmente, um cientista de esquerda e de nova geração que se reclama de herança epistemológica popperiana - tudo em comunhão no mesmo avatar. É obra. Como diria o Eça, "isto não é um homem, isto é um santo".

E todo este maná graças às imposturas intelectuais dos outrora tão queridos "compagnons de route". Há feridas que custam a sarar. As paixões corrompem o juízo, os ódios, pelos vistos, são eficazes a recompô-los.

É claro que quando a procissão sai do laboratório, a solidez na defesa da realidade já perde pujança e continuam alegremente a bater palmas aos que defendem que as leis da economia podem ser alteradas por decreto. Mas são contas de outro rosário.

E quanto a pântanos metafísicos, por oposição, supõe-se, à fertilidade clarividente de coisas como a teoria das cordas, haveria muito que discutir. Fica para outra altura.

Agora dizer isto - "acho óbvio que não há mais ciência porque ninguém pesca puto do assunto e, como tal, não lhe atribui a respectiva relevância" - é cair na falácia de "begging the question", em latim "petitio principii", na pobreza nativa "argumentar circularmente", não?

Façam comentários sobre o assunto em causa que não se sustentem em falácias, paralogias ou sofismos que serão elevados a post.
 
Assinado: Captain Hugo, do Movimento Humeano para intelecto livre
 
Caro Comandante Hugo: no caso do clube quizeiro, julgo que a alergia científica se deverá realmente à falta de preparação geral, não a opiniões específicas sobre a validade da coisa enquanto cultura e, ademais, cultura quizável. Tal não significa que não seja realmente uma argumentação circular (admito-o, e era a posta de pescada da praxe), mas o círculo será mais provavelmente uma elipse altamente excêntrica: o perihélio ocorre mensalmente, mas é longe do centro de massa que ocorre a deseducação científica a priori. De qualquer modo, julgo que o quiz se auto-regula bastante bem: se a minha equipa açambarca muitas perguntas científicas, a competição directa irá preparar-se melhor e, no extremo, um equilíbrio com mais ciência será atingido. Neste sentido, discutir a ciência no quiz é como preparar decretos para um problema inexistente, e por isso não versei demasiado a questão.

Quanto à fertilidade metafísica da teoria de cordas, é chão que já deu uvas, mas demasiadas: a versão leiga da coisa conta que a dita teoria prevê uma infinidade de Universos e engloba toda a física, mas padece de dois defeitos: não consegue fazer previsões verificáveis numa escala de energia acessível, o que quase que choca com o paradigma da falsicabilidade (quase, porque com o tempo, a nossa capacidade de sondar fenómenos mais rebuscados talvez se refine o suficiente). Mais importante, a Teoria de Cordas pretendia provar que apenas pode existir o nosso Universo, isto é, que o conjunto das constantes físicas tem necessariamente de ter os valores que observamos. Isto é empirismo no seu melhor, pois não se preocupa demasiado com o estudo de cada fenómeno (que é sempre um estudo causal), mas apenas com o conhecimento derivado das experiências (entendido como refinamentos progressivos das ditas constantes).

Infelizmente, provou-se que podem existir infinitos conjuntos auto-consistentes de constantes universais, o que permite duas interpretações: que poderão existir inúmeros Universos, cada um com a sua física particular, ou que só existe o nosso... Apostando na última, o esforço actual centra-se na busca de "regras de selecção de Universos", isto é, a descoberta das leis da evolução estatística destes "Universos possíveis", de modo a concluir que o nosso é o mais provável de existir.

Na minha opinião, isto não é verdadeiramente pantanoso, porque foge à interpretação subjectiva; é, isso sim, imensamente complexo e, diga-se, um pântano matemático: a fuga para a metafísica ocorre normalmente quando as continhas se tornam demasiado dificeis.

Por isso é que a comunidade física actual está a perder o interesse na questão, e a tentar não saltar etapas: primeiro há que compreender melhor o nosso Universo, depois arriscarmo-nos no Multiverso. A teoria de cordas tornou-se um exercício de estilo de física matemática (aliás, a cadeira que tive do assunto era ministrada pelo Departamento de Matemática, não de Física).

De resto, a herança popperiana deve muito ao investimento inicial do empirismo, e também à crítica do último: tomado em excesso, impede qualquer salto indutivo, por não fundamentado directamente na experiência. O que é actualíssimo: os autores da praxe glosam muito o tema da ciência enquanto religião moderna. No entanto, fazem-no sempre numa perspectiva leiga, isto é, de ciência enquanto magia para os não-iniciados. E, obviamente, confundem ciência com tecnologia, essa sim mágica para muitos físicos teóricos que não se lembram do primeiro e segundo ano do curso.

Mas, de facto, a ciência é uma religião, porque se baseia na fé: o vetusto paradoxo humeano da queda da maçã (que cai sempre que a vemos largada, mas que nada podemos dizer sobre se cairá no futuro) é irresolúvel (ou, quiçá, uma mera constatação): há um acto de fé em admitir que podemos prever as coisas pelo uso da razão. Não precisamos de cair em excessos causais (para isso há a parábola cartesiana do relógio de igreja), mas temos de ter fé, pura e inempírica, que conseguimos. O Popper dá a receita moderna da coisa, uma espécie de intervenção mínima do Estado na auto-regulação intelectual da nação.

E é aqui que o hiper-relativismo se imiscui no assunto: ao antever este pressuposto religioso, ignora que este se baseia na fé da razão como instrumento do homem (mais Hume), e aplica à ciência a dinâmica subjectiva das demais religiões, com todos os meandros sociológicos e movimentos circulares de massas. Obviamente, os cientistas são animais sociais (embora pouco, diga-se), com todos os problemas e benesses daí resultantes. Mas a tal corja pós-moderna confunde a admissão da impossibilidade de conhecer a realidade (natureza, tudo, etc) como uma batata, com a existência dessa realidade; e, se a emoção é a força motriz do homem (Hume na mesma), tal não significa que a razão não seja uma força capaz. A ciência é um exercício de humildade confiante, não de solipsismo debochado.

Há uma clara sucessão histórica: da recusa da indução e causalidade do Hume evolui-se para a afirmação da ciência como (acto de fé no) inter-relacionamento fenomenológico do Comté, limitado pelo critério da falsicabilidade do Popper. Embora o positivismo seja tradicionalmente associado à mecânica quântica, também a relatividade geral abdicou da causalidade Newtoniana e não encara a estrutura do espaço-tempo como um fenómeno per si: é apenas o substracto abstracto (ah, ah) que conecta diferentes fenómenos, mas cujos meandros locais (isto é, previsões específicas) devem ser passíveis de escrutínio.

Resumindo: a ciência tem um claro pressuposto metafísico - não que há uma unidade causal dos fenómenos, mas uma inter-ligação. Mas o fazer ciência é uma profissão como as demais (como ser Padre ou Xamã).

Entretanto, voltando ao início: eu não defendo que a ciência é cultura porque é sobre ela que se constrói o nosso modo de vida. Isto é mentira: a tecnologia antecede a ciência por milhares de anos, e o supremacia romana sobre os gregos dever-se-á em muito à primazia da tecnologia de uns sobre a ciência dos outros (e, talvez, à falta de uma verdadeira nação grega, ouvi dizer). Do mesmo modo, a maioria das questões ditas científicas no quiz são meros factóides técnicos. Neste capítulo, a tecnologia merece tanta distinção cascática como a medicina.

A questão fundamental será, ao fim ao cabo, o que é a cultura quizável? Não será certamente toda a cultura (que não sei nem tentarei definir) e, como disseste, assenta muito no conhecimento trivial. E, aproveitando a tua deixa, defendo finalmente mais ciência pura e dura no quiz porque esta é um dos tais pontos de intersecção de caminhos, entre a filosofia racionalista e a metafísica, entre a religião e a tecnologia.

Na minha opinião, a maioria dos quizeiros confunde ciência com técnica. E, se não há uma afirmação clara da nobreza da ciência, apenas da utilidade da tecnologia, então não há motivo para quizá-la além dos próprios conhecimentos do perguntador. Em contraste, a literatura e a história são (legitimamente) encaradas como cultura "nobre": mesmo que não se leia ou compreenda a fundo, há que colocar umas questões. Parafraseando o que disse há pouco: a cultura tem um claro pressuposto metafísico (a fé no conhecimento como algo bom), mas o perguntar cultura é uma actividade lúdica. E o quizeiro é, também ele, um animal social.
 
Muito bom, comandante Jorge. Vou publicar isso.
 
Estas postas comandantinas cheiram-me a conversa de engate, no Frágil, às quatro da manhã! Eu sei porque já me tentaram engatar assim uma vez que fui lá em visita de estudo.
 
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