Tuesday, May 02, 2006
GRANDE CONCURSO BLOG QdC
Iniciamos com este post uma nova secção, com o objectivo de saciar os apetites quizzisticos no penoso mês de intervalo entre jornadas. Lançamos um desafio aos nossos leitores: para esta primeira edição, deixamos aqui publicado um texto, uma crónica, escrita em meados do século passado (embora, como verão, se mantenha muito actual). O tema - e título - desta crónica é “Quiz”. Terá sido a primeira vez que num jornal de grande divulgação foi publicado um ensaio sobre os jogos de quiz. Para mais, foi escrita por um dos grandes escritores e pensadores da civilização. E prova que o pessimismo cultural não foi inventado pelo Steiner. O desafio é precisamente é este: quem é o autor deste delicioso naco de prosa? Deixem as vossas respostas na caixa de comentários, o primeiro a acertar receberá, na próxima jornada, um prémio: naturalmente um produto cultural, uma obra-prima da literatura europeia em luxuosa edição. Uma pista: este cronista e escritor, para lá de europeu, nasceu no século XIX, assinava sempre com pseudónimo. Infelizmente, hoje é pouco lido, mas foi dos romancistas mais populares do seu tempo. Boa sorte! E, se querem mesmo acertar, leiam o texto com atenção até ao fim!
Os monossílabos têm sucesso: gag, test, sketch, girl, vamp. Imediatos como picadas de insecto, maciços na acção como compressas medicinais, entram na memória, mexem com a imaginação e fazem rapidamente a volta ao mundo. Aos supracitados juntou-se um: quiz, que, em inglês – ou melhor: em americano – significa pergunta, quesito. O quiz é um exame divertido a que as grandes revistas americanas submetem os leitores, e ao qual os leitores se sujeitam espontaneamente. É uma espécie de tomada de temperatura e de pressão. Debaixo de uma fotografia de formato selo, há uma pergunta: “A personagem fotografada acima é Fleming, Einstein, Laughton, Hemingway, Einaudi?” Outra pergunta: “Os etruscos habitaram a Sicília, a Toscana, a Sardenha, a Calábria, a Ligúria?” Ainda outro quiz: “Kadija é uma cidade, uma mulher, uma doença, uma flor, um instrumento musical?”
À semelhança das palavras cruzadas, o quis aumentou as vendas das enciclopédias de pequeno formato; e o rio (três letras) que banha Berna, ou a mulher (quatro letras) que foi amada por Júpiter se tornaram familiares aos que antes não tinham muita familiaridade com os mapas e a mitologia.
Em 1910, o comediógrafo Henri Lavedan, escreveu, em tom de bonomia, esta página alarmante: “Quantas vezes o meu amigo Lenôtre, quando eu tinha o prazer de elaborar com ele a nossa comédia Varennes, me disse e repetiu: “Você é incorrigível. Está convencido de que se saiba que Luís XVI foi guilhotinado. Pois bem: não é assim. Raras pessoas ousam afirmá-lo; alguns só o presumem…Dois em mil! E ainda!... Não se sabe nada…nada!” Então – prossegue Lavedan – eu considerava isso uma pilhéria do meu amigo. Reconheço hoje que ele tinha razão. E, fazendo esta declaração, não pretendo atirar a pedra ao meu próximo, porque ela me recairia no nariz. Mais ignorante do que outrem, eu verifico simplesmente a imensidade, a imensidade insuspeitável da ignorância, sobretudo em História e Geografia. Apesar do que estudamos, ninguém sabe nada e é possível deixar cair desassombradamente os erros mais crassos, porque ninguém se curvará a juntá-los. Experimentem. Digam num salão que Luís XV era pai de Luís XIV e que o duque de Bordeaux foi filho do conde de Chambord; que os Países Baixos é o nome antigo da Espanha; que Oudenarde é uma ave de galinheiro; que Marborough há de ficar sendo um dos melhores contos de Perrault; que o quadro das bodas de Canaã é reputado justamente a obra prima de Pergolesi…e esperem para ver.”
Era a época em que, recebendo a visita dum embaixador búlgaro, Giovanni Giolitti lhe disse: “A Itália e a Bulgária têm interesse em serem boas amigas, já que são banhadas pelo mesmo mar.”
A ignorância tem o seu lado pitoresco; seríamos ingratos se dela maldisséssemos demais. A ela devemos as respostas mais divertidas. Um cortesão de Luís XV blasonava entender de pintura. O rei, para o pôr à prova, apresentou-lhe um quadro com a Crucifixação e perguntou-lhe de quem era essa obra. O cortesão relanceou um olhar à tela e respondeu com importância: “No caso, nem se trata de adivinhar, porque está bem clara a rubrica do autor. Este quadro é do famoso pintor Inri.”
Mademoiselle Champmeslé, célebre actriz que foi amiga de Racine, perguntou a este donde extraíra o argumento da tragédia “Atalie”. “Do velho testamento” – respondeu Racine. “Ora essa! – tornou ela, com ingénua surpresa – “Por que do testamento velho, se há um novo?”
A actriz Rachel, cônscia da sua ignorância e já protegida pela celebridade, comprazia-se em a ilustrar com anedotas. Certo dia, apresentaram-lhe um pintor ou escultor chamado Millot. Naquele tempo, a Vénus de Milo era o assunto do dia; e Rachel, para se mostrar amável, vibrante e informada, disse com entusiasmo: “Vi a sua famosa Vénus, a Vénus de Millot. O senhor é um grande artista!”
O exercício quotidiano das palavras cruzadas e alguns quizes as imunizariam por certo contra essas gaffes. Mas esta nossa época requintada, que preza a anedota, os gráficos, as histórias curtas, o artigo condensado, a vida romanceada, a curiosidade científica, foi pervertida pela comodidade; já agora, a cultura é um bar automático, um distribuidor com moeda e manivela, de todo o saber. Afrontar directamente o livro, para assimilar num metabolismo calmo as suas belezas, ou o pensamento de que é tecido, tornou-se numa fadiga para os pobres estômagos modernos, estragados pelas sínteses, pelos abstractos, pelas pílulas, pelas drogas. A Editora da Universidade de Colúmbia realizou um inquérito entre editores, escritores, críticos, livreiros e bibliotecários, para averiguar quais são, segundo o gosto hodierno, “os livros mais enfadonhos da literatura universal”. O inquérito deu resultados desconcertantes: os livros mais aborrecidos seria, pois: o Faust de Goethe; o Dom Quixote de Cervantes; o Paraíso Perdido de Milton; Moby Dick de Melville; e Ivanhoe de Walter Scott. “Bastante enfadonhos”, no dizer dos interrogados, são também dezassete obras de Shakespeare.
Assistimos a uma crise de decomposição da cultura e da literatura. A química insinuou-se no próprio domínio das ideias, com as suas desagregações, as suas recomposições, as suas transformações, as suas sínteses. O romance de Balzac ou de Stendhal reduz-se a uma série de quadradinhos, com as palavras saindo da boca das personagens principais, como o ectoplasma, dos lábios do médium, nos truques fotográficos dos mistificadores; os aforismos cínicos de Rastignac, de Vautrin, os filosofemas de Julien Sorel são enumerados noutro ponto do jornal, um por cima do outro, como comprimidos de aspirinas. A necessidade de uma paisagem satisfaz-se com fotografias de manequins, desfilando num estabelecimento de “haute couture”, ou de mulheres de maillot nas praias da Califórnia. Tendo à mão o alimento espiritual tão comodamente subdividido e servido, quem terá ainda ânimo de afrontar a obra-prima desta ou daquela literatura que emprega três páginas para descrever a entrada dum trem numa estação, ou dedica um capítulo inteiro a uma batalha?
Os estratos concentrados de cultura farão nascer de novo o gosto pela elaboração sossegada. Não tardaremos a perceber que nada de sério poderá ficar, se não for mastigado e digerido pacientemente. As palavras gregas, que nos ajudam a entender a etimologia de certos termos do nosso idioma, são trinta, ou cinquenta, no máximo uma centena. Todavia, não basta aprender essas poucas dezenas de vocábulos gregos, que poderíamos decorar numa manhã. É preciso estudar grego cinco anos, para que eles nos entrem no sangue.
Conta-se em Paris uma velha anedota, actualizada como tantas outras: um inspector de ensino pergunta a um colegial: “Quem quebrou o vaso de Soissons?” “Não fui eu” – respondeu o aluno. O inspector narra o episódio à esposa, e ela exclama: “ Se foi outro, porque o pequeno havia de dizer que foi ele?” Afinal a história chega ao gabinete do ministro que determina energicamente: “Mandem consertar o vaso e não me falem mais disso!”
Isto é simplesmente a nostalgia da cultura, a saudade da ignorância olímpicos dos áureos tempos em que o quiz não provocava apetite mental.
Comments:
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Anatole France é um bom palpite, concordo. Era a minha segunda hipótese, bolas... vou ter de inventar outra.
Pitigrilli... era provavelmente o meu próximo palpite. A sério. Aliás, se soubesse da existência do senhor antes do Rogério (parabéns Rogério!) a ter adiantado, até já o teria avançado. Enfim, sempre aprendi qualquer coisa. Já agora: não havia nome menos porno para desencantar? Ou sou só eu?
Venha o próximo!
Venha o próximo!
Se não me falha a memória esse gajo do Pitigrilli escrevia romances cor-de-rosa nos finais da década de 50 e era, de facto, bastante conhecido. Se estiver correcto o Rogério é, sem dúvida, o nº 10 da Selecção Nacional de Quizz !! Tenho dito.
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